quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

O governo líquido

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 09/12/2015

O Palácio do Planalto avaliou mal as próprias forças e acreditou que poderia atropelar a oposição. A derrota na eleição da comissão especial, em votação secreta, por 279 a 199, foi acachapante

Às vésperas de completar o primeiro ano de mandato, o governo Dilma Rousseff está passando ao “estado líquido” em razão da forma como as crises política, econômica e ética se retroalimentam, agora agravadas pelo início do processo de impeachment da presidente da República. Assim como o governo vira suco, é incrível como o poder da presidente Dilma Rousseff está se volatilizando, isto é, passa ao “estado gasoso”.

A confusão de ontem na Câmara dos Deputados, na eleição da comissão especial que vai examinar o pedido de seu impeachment, ilustra bem a incapacidade de o Palácio do Planalto gerenciar a crise política, a única na qual o governo poderia encontrar uma saída negociada com as principais forças políticas para enfrentar a crise econômica, se tivesse apetência pra isso. O trio que comanda a tropa anti-impeachment na Câmara — o líder do governo, José Guimarães (PT-CE), do PT, Sibá Machado (AC), e do PMDB, Leonardo Picciani (RJ) — sofreu uma derrota inacreditável.

Havia um ambiente adverso, mas o Palácio do Planalto avaliou mal as próprias forças e acreditou que poderia atropelar a oposição. A derrota na eleição da comissão especial, em votação secreta, por 272 a 199, com duas abstenções, foi acachapante. A margem de segurança da presidente é de apenas 28 votos para evitar que o processo do impeachment seja aprovado, o que exige 342 votos. Não participaram da votação 41 deputados.

Os questionamentos jurídicos dos governistas para reverter no Supremo Tribunal Federal (STF) a formação de uma comissão majoritariamente governista, mesmo que tenham algum sucesso (o ministro Edson Fachin suspendeu a instalação da comissão; o plenário da Corte julgará o caso na próxima quarta-feira), serão apenas protelatórios. Reza o regimento da Câmara que a comissão especial seja eleita em plenário; a maioria é oposicionista. Não há como impedir que seja constituída respeitando a correlação de forças na Casa. É assim que funciona a democracia, e não na base de depredação de cabines e urnas de votação.

Pela sucessão de erros de condução da política, parece que o maior adversário de Dilma Rousseff é ela própria, e não os líderes de oposição, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e, agora, seu mais novo desafeto público: o vice-presidente Michel Temer. O fracasso de Dilma na política não é assimétrico em relação à economia. A mudança da meta fiscal de um superavit projetado de R$ 56 bilhões para um deficit de R$ 120 bilhões em 2015 fala mais alto do que toda a retórica governista.

O governo não fez o ajuste fiscal nem pretende fazê-lo, ainda mais porque as forças que a presidente da República arregimenta para se manter do poder não o desejam. O resultado prático é país quebrado, principalmente as prefeituras, no setor público, e as indústrias, no setor privado. Quem paga o pato é a sociedade. Sem controle sobre o processo político, com a economia em depressão, a terceira variável da crise tríplice, a Operação Lava-Jato, é mais incontrolável ainda.

Ontem, o ex-líder do governo no Senado Delcídio do Amaral (MS), suspenso por 60 dias do PT, contratou o advogado Antônio Augusto Figueiredo Basto, o mesmo do doleiro Alberto Youssef, para negociar a delação premiada com o Ministério Público Federal. Preso preventivamente, o senador eleito pelo Mato Grosso do Sul foi denunciado pelo ex-diretor Internacional da Petrobras Nestor Cerveró, aquele que a presidente Dilma Rousseff acusa de tê-la enrolado na compra fraudulenta da refinaria enferrujada de Pasadena, no Texas (EUA), quando ela era presidente do Conselho de Administração da Petrobras. Delcídio é o novo homem-bomba.
Fim das utopias

Mas voltemos ao “governo líquido”. O sociólogo judeu-polonês Zygmunt Bauman, uma lenda viva, cunhou — sem trocadilho — o conceito de “sociedade líquida” para explicar o que está acontecendo no século XXI, em contraposição à sociedade industrial moderna, das duas guerras mundiais e da guerra fria, estruturada em classes sociais bem definidas, que deu origem aos partidos políticos modernos.

Segundo ele, a primeira diferença da sociedade sólida para a líquida é o fim das utopias. Não se pensa a longo prazo, os desejos já não se traduzem em projetos coletivos e no trabalho continuado, mirando as futuras gerações. A reflexão sobre a sociedade e o progresso como bem compartilhado deram lugar ao consumismo, ao prazer individual, ao imediatismo na sociedade, ao sabor do mercado. Na metáfora do caçador e do jardineiro que ilustra a teoria da “sociedade líquida”, o caçador da era pré-moderna está de volta, tomou o lugar do jardineiro, que caracterizaria o comportamento do indivíduo da sociedade do século XX.

Até que ponto essa realidade interfere na crise política que estamos vivendo? De certa forma, o governo Dilma está sendo tragado por uma “sociedade líquida”, quando nada porque o PT virou um partido de caçadores e não de jardineiros. O velho discurso de esquerda, exumado para barrar o impeachment, ainda motiva os mais empedernidos militantes, que estão perdidos na floresta, mas é incapaz de convencer a sociedade. Mas essa já é outra discussão.

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