segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Cuba: neblinas do presente

 A Neblina do Passado daria um excelente roteiro de cinema, pois relata a vida em Cuba após o colapso do Leste Europeu, de forma nua e crua. Não é uma obra de refugiado, pois o seu autor vive na ilha de Fidel Castro

 Talvez o escritor cubano Leonardo Padura possa se tornar um novo Gabriel Garcia Marques. Não sei, mas pode ser. O homem que amava os cachorros lhe garante um lugar na galeria dos grandes escritores latino-americanos. Já conhecia Adeus, Hemingway e agora estou lendo A Neblina do Passado. Ao contrário do romance histórico que conta a vida do assassino de Trotsky, esses dois são estórias policiais noir, um gênero literário que ganhou força no período do maccartismo, a partir dos tablóides norte-americanos, que viraram o refúgio  para os roteiristas expulsos de Hollywood.

Alguns noir são clássicos do cinema, como O Falcão Maltês (1930), de Dashiel Hammett, lançado como Relíquia Macabra (1941), com Humphrey Bogart e Mary Astor, e L.A. Confidential (1990), de James Ellroy, que no cinema virou Los Angeles, Cidade Proibida (1997), com Guy Pearce, Kevin Spacey, Russell Crowe, James Cromwell, Kim Basingerde.

A Neblina do Passado daria um excelente roteiro de cinema, pois relata a vida em Cuba após o colapso do Leste Europeu, de forma nua e crua. Herói do romance, Conde é um ex-policial que vive da venda de livros usados e descobre um tesouro: a mais completa biblioteca particular de Cuba. Mas é num livro de receitas da gastronomia crioula que surge o grande enigma, um recorte de jornal sobre Violeta Del Rio, misteriosa cantora de boleros morta em circunstâncias não-esclarecidas. Ao contar essa história, Padura relata o cotidiano de miséria e pobreza da ilha, bem como o fracasso da busca do "homem novo", o grande mote da Revolução Cubana, cujo estereótipo foi e continua sendo o revolucionário argentino Che Guevara.

Eis um trecho do livro:

-- Passamos o tempo todo , todos os dias, vivendo a responsabilidade de um momento histórico. Esforçaram-se para nos obrigar a ser  melhores -- disse Coelho, mas Conde negou com a  cabeça, quase sem conseguir se conter.

-- E por que há tantos garotos agora que querem ser rastafáris, roqueiros, rappers e até muçulmanos, que se vestem como palhaços, se maltratam, enchendo-se de argolas e tatuando-se até os olhos? Por que há tantos injetando em si drogas pesadíssimas, tantos que viram putas, cafetões, travestis e usam crucifixos e colares de candomblé sem acreditar nem na porra da mãe? Por que há tantos cínicos que juram por uma coisa e acreditam em outra, e tantos que passam a vida calculando como podem roubar para ter dinheiro sem trabalhar demais? Por que há tantos que querem ir embora daqui?

-- Eu tenho um nome para isso -- retomou a batuta o historiador do grupo: -- cansaço histórico. De tanto viver o excepcional, o transcendente, as pessoas se cansaram e querem a normalidade. Como não encontram, vão buscá-la pelo caminho da anormalidade. Querem se parecer com os outros, e não consigo mesmos, por isso são rastas, rappers ou o que for, e se enchem de drogas até aqui...Não querem participar, não querem ser bons à força...Não querem, sobretudo, se parecer conosco, que somos seus pais e uns fracassados de merda...

-- O que mais me enche não é isso -- refletiu Conde -- Os que me deixam doentes são os que querem parecer perfeitos, confiáveis, mas são uns oportunistas de merda.

Coelho concordou e tomou um gole. Algo espinhoso e ácido negava-se a descer-lhe pela garganta.

-- Já pararam pra pensar em que classe de país nos foi dado viver? Sim? Não? Esperou a reposta que  não veio e arrematou:-- Pois deveriam pensar. este é um país condenado à desproporção. O próprio Cristovão Colombo foi quem começou a ferrar com tudo quando veio com aquela história de que esta era a terra mais linda e tudo o mais. Tivemos então a sorte geográfica, histórica, de estar onde estávamos no momento em que estávamos, e a sorte ou a desgraça de sermos como somos, e vejam só, houve até uma época que podíamos produzir mais riquezas do que a ilha precisava, e achamos que éramos ricos. Como se ainda fosse pouco, produzimos mais gênios por habitante e por metro quadrado e passamos a nos achar melhores, mais inteligentes e mais fortes...Essa desproporção é também nossa maior condenação: nos deixou no centro da história. Não se esqueçam que Martí queria equilibrar o mundo a partir daqui, todo o mundo, o mundo inteiro, como se tivéssemos na mão a merda da alavanca que Arquimedes queria. O resultado disso é que somos tão históricos que não só nos achamos melhores, mas às vezes somos mesmo. E aí estão as consequências...Sentido histórico e má memória, indolência e predestinação, grandeza e leveza, idealismo e pragmatismo, tudo para equilibrar a carga com virtudes e defeitos, não é? Mas, no fim de tudo, vem o cansaço. O cansaço de sermos tão históricos e predestinados.

-- Cansaço histórico - Conde calibrou a definição de Coelho, terminou seu copo de rum e olhou para seus amigos, exemplos agonizantes da síndrome do cansaço histórico adquirido.


Um comentário:

Anônimo disse...

Acho que estou assim também, com a síndrome do cansaço histórico adquirido. Primeiro era acabar com a ditadura, dps, as diretas já, mais tarde o primeiro presidente eleito pelo voto popular, dps acabar com a inflação.. mais tarde, o 'pedagio democrático' do primeiro presidente operário... agora o 'pedágio democrático' não sai mais do poder. Quando vamos virar um país sério, onde direitos correspondem a deveres? Que cansaço histórico nestes meus quase 60...