domingo, 3 de julho de 2011

Presidente gauche

Por Luiz Carlos Azedo
Com Leonardo Santos
O obituário do ex-presidente Itamar Franco (1930-2011) bem que merecia um poema do seu conterrâneo Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Diria o poeta: vai, topetudo, ser gauche no céu. Itamar foi um anjo torto na política brasileira, que às vezes parecia louco por desafinar o coro dos contentes.

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Não era um político mineiro como os outros. Era baiano. Talvez por ter sido criado em Juiz de Fora, onde foi prefeito, adquiriu a sagacidade dos mineiros, mas com estilo mercurial, explosivo, imprevisível. Com ele só havia duas certezas: a coragem de buscar o que parecia impossível e a retidão cartesiana. Itamar formou-se em engenharia civil.

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Chegou à Presidência da República por via inimaginável: quando rompeu com o presidente José Sarney e deixou o PMDB, não foi para o PSDB, escolheu o PL. Foi vice de Collor de Mello num partido nanico: o PRN. Desentendeu-se com Collor antes mesmo da campanha do impeachment e assistiu de camarote a sua renúncia. Ao assumir a Presidência, montou um ministério de políticos das mais diversas tendências, do almirante Ivan da Silveira Serpa, ministro da Marinha, estrategista militar da transição, a Luiza Erundina, ex-prefeita de São Paulo, que foi expulsa do PT ao aceitar o cargo de ministra da Administração.

Paradigma ético


Um episódio ilustra o compromisso ético de Itamar Franco: o afastamento do então ministro-chefe da Casa Civil, Henrique Hargreaves, injustamente acusado de corrupção. Hargreaves teve que responder às denúncias fora do cargo, por sugestão do líder do governo na Câmara, o deputado comunista Roberto Freire (foto), que obteve apoio de Itamar. Esclarecida a situação, Hargreaves voltou ao posto, costurou uma aliança com o líder do antigo PFL, Luiz Eduardo Magalhães (BA), e levou Freire a pedir demissão na primeira trombada com o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso.

Adeus, camarada

Itamar encerrou a carreira política como senador eleito pelo pequeno PPS, presidido pelo deputado Roberto Freire (SP), seu amigo. Levou para a legenda um velho escudeiro e ex-desafeto de Freire, Henrique Hargreaves (foto), hoje representante do governo de Minas em Brasília. Depois da filiação ao PPS, Hargreaves passou a brincar com Itamar, chamando-o de "Presidente Tovarishch".

Sem medo

O ex-presidente Itamar Franco era desassombrado. Foi eleito senador na extraordinária safra de políticos oposicionistas que derrotaram o regime militar nas eleições de 1974. A resposta dos militares foi intensificar a repressão, prendendo oposicionistas em todo o país. Um deles era o ex-deputado petista Paulo Delgado, então professor do Colégio Cristo Redentor, de Juiz de Fora, detido ilegalmente em plena sala de aula. Um discurso inflamado de Itamar no Senado obrigou o Exército a libertá-lo.

Criador e criatura

A relação de Itamar Franco com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi de amor e ódio. FHC era ministro das Relações Exteriores quando foi convocado por Itamar para assumir o lugar de Eliseu Resende no Ministério da Fazenda. Cartada de mestre que renovou as esperanças no seu governo e resultou no bem-sucedido Plano Real. A eleição de Fernando Henrique Cardoso como seu sucessor ofuscou os méritos de Itamar, que rompeu com FHC quando assumiu o governo de Minas. O político mineiro nunca engoliu a emenda da reeleição.

Os amigos


Na Presidência da República, Itamar Franco não se cercou de áulicos. O ministério era até estridente, com muitos políticos sem papas na língua. Os amigos tinham liberdade para falar o que pensavam, a ponto de os aliados reclamarem por Itamar permitir tanta intimidade de seu estado-maior. Um dos que tinha direito a entrar no seu gabinete sem pedir audiência e participar das conversas com os demais ministros, emitindo opiniões próprias, era o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Maurício Corrêa, seu ministro da Justiça.

História//

Para o senador Pedro Simon (PMDB-RS), o ex-presidente Itamar Franco foi um exemplo de integridade, responsabilidade e austeridade na administração pública: "Seu governo, o qual tive a honra de integrar como líder no Senado, ainda carece do devido reconhecimento. Essa é uma tarefa para a História".


O legado / Nacionalista, desenvolvimentista, democrata, Itamar Franco nunca transigiu nas suas posições. Assumiu o poder em meio a uma grave crise política e econômica que já havia derrotado três presidentes e vários planos econômicos. Lutou contra a hiperinflação até acertar a mão. Graças a isso, com o Plano Real, seu então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, elegeu-se presidente da República por dois mandatos. Não é falso afirmar que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva também colheu os frutos de seu governo.

O fuscão/ Em meio à crise econômica e à hiperinflação — não havia ainda o Plano Real —, com um reajuste nos preços de 4% ao dia, Itamar Franco resolveu apostar no crescimento. Negociou com os sindicatos e o PT um acordo para pôr fim às greves do ABC e incentivar a indústria automobilística: o pacto automotivo. O símbolo dessa política foi o relançamento do velho fusca, ridicularizado à época, mas foi assim que começou a produção dos carros populares no Brasil, uma estratégia que se mantém
até hoje.

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